Como um chefe de seção visionário pode fazer mais do que governos que mal conseguem enxergar o presente
Por Marcos Sá Correa
Procura-se o funcionário público que, há quase 70 anos, viu o futuro tal como ele seria hoje. Era chefe da Seção de Parques Nacionais do Serviço Florestal do Ministério da Agricultura no Estado Novo. Não parecia encarregado de grandes assuntos, porque o País tinha na época três parques nacionais. Mas foi nele que, 29 anos atrás, ao publicarem o primeiro plano de manejo para a unidade de conservação que nasceu na fonte das cataratas do Iguaçu, os especialistas se escoraram para defender os limites naturais que acabaram estendendo o parque a mais de 182 mil hectares. Isso é muito? Sim. Bastante? Nem de longe. Não garante a sobrevivência de tudo o que os pioneiros encontraram na flora e na fauna do Iguaçu, ao colonizarem os sertões do Paraná, há pouco mais de meio século. Mas é pelo menos 60 vezes maior que os 3.300 hectares do parque que, a muito custo, com décadas de atraso, foi criado pelo governo Getúlio Vargas em 1939. Três anos depois, esse burocrata anônimo começou a argumentar que era “oportuno pensar-se desde já em se acrescer a reserva, a fim de que não venhamos a nos penitenciar quando as despesas forem assustadoras e as matas devastadas”. Seus argumentos são muito citados no primeiro planejamento ecológico do Iguaçu, que ficou pronto 39 anos depois desse parecer. Registra entre aspas, por exemplo, a autoria da ideia de que a ampliação teria “limites fáceis de serem locados, por coincidirem com acidentes naturais do terreno”. E “vantajoso”, porque daria ao parque uma dimensão “digna de nossa grandeza territorial”, em vez da mesquinharia fundiária que se esboçava no decreto de instalação. E permitiria a anexação dos pinheirais nativos “à mata subtropical das barrancas dos Iguaçu e Paraná”. Dessas florestas com araucárias originais restam atualmente, no Paraná, menos de 1%. É uma das riquezas naturais que o Brasil mais botou fora. A maioria virou madeira de caixote. Ou pasta de papel. E ele previu isso do alto de sua cadeira de chefe de seção, num tempo em que as matas paranaenses eram tidas e havidas como inesgotáveis. Portanto, estavam inteiramente à disposição do machado e da serra de quem se aventurasse a colocar a mão primeiro em terras públicas. O que torna mais intrigante esse funcionário é ele ser tão citado pela posteridade, sem que seu nome conste de uma linha sequer do plano de manejo. Passa pelo documento como um fantasma visionário. Ou uma encarnação imaterial do bom serviço público, de quem restaram só as ideias claramente expostas em documentos oficiais presumivelmente assinados com garranchos ilegíveis, que lhe garantiram o anonimato póstumo. A menos que um pesquisador resolva desencavá-lo dos arquivos nacionais, ele sumiu como as espécies extintas que tentou preservar. É o candidato perfeito a uma boa biografia. Principalmente agora, quando o Brasil precisa tanto de funcionários públicos de olho no futuro, sob governos que mal conseguem enxergar o presente além do calendário eleitoral. Ou teriam visto a tempo que as favelas e os condomínios clandestinos de Angra dos Reis, da Ilha Grande e da cidade do Rio de Janeiro eram armadilhas prontas para cair, na primeira chuva, sobre os moradores que os políticos fingem proteger e agradar.
*Marcos Sá Correa é jornalista e editor da revista “Piauí”
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